BOA TARDE
Dou continuidade à publicação nesta página das pequenas crônicas que semanalmente estão sendo lidas no Jornal da Tarde (FM Rádio Padre Cícero, 104,9 de Juazeiro do Norte) nos dias de quartas feiras, sob o título Boa Tarde para Você.
245: (25.01.2017) Boa Tarde para Você, Gizele de Menezes Bezerra Lima
As primeiras chuvas que já começam a cair sobre essa nossa mui sofrida província indicam que não será muito fácil para a municipalidade nos socorrer, diante dos estragos que já aparecem sobre a malha viária da cidade, gerando consequências diversas para o nosso desconforto. À frente de todas as estratégias que até poderão reverter esse aparente caos urbano, estará você Gizele Menezes, agora Secretária Municipal de Infraestrutura, assumindo há pouco esse encargo espinhoso, pleno de um passivo tenebroso pelo acúmulo de muitos desacertos. Gostaria de louvar a equipe de governo por contar com seu concurso, arquiteta e urbanista tão jovem e de tão nomeadas empreitadas, até já testada junto ao governo municipal, sem que precise lembrar aqui ainda a minha viva impressão diante dos projetos do centenário. Brasileiro, profissão esperança – diria o poeta Antonio Maria Morais de Araújo, onde vou buscar alento para fixar meu próprio sentimento, estirando sobre a comunidade, à hora em que procuramos superar os últimos desastres municipais, pela falta de zelo público com as coisas da cidade. Diz o comentário oficial que há pouco ouvimos do senhor prefeito, Gizele, que um novo número, estimado em 56 milhões, dá o novo tom do desastre anunciado, esperado sempre a cada início de governo, sobre a pilantragem cometida pelo antecessor, contra a lei, por irresponsabilidades. Nada de novo para você, imagino, pois ainda em 2009 soma muito superior também se revelou, casualmente, da mesma herança maldita e pessoal, e que lhe preocupava diante da tarefa posta para preservar números e metas a serem investidos em habitação popular. Tão pouco tempo decorrido e o que percebemos, Gizele, é que Juazeiro do Norte parece estar fora do nosso controle, diante de todos os desafios que se impõem para procurar normalizar algo que contribua para o nosso desejado sonho de qualidade de vida em cidade tão amorosa. Nos últimos 3 anos, por diversas ocasiões eu estive em edifícios públicos, escolas, hospitais, repartições, e saí dali, principalmente dos colégios, tendo a sensação de que algo irremediável nos persegue e nos derrota todo dia, minando nossas forças a ponto de fazer ruir nossas esperanças. Quando penso que você é alguém que traz na sua juventude e na sua competência profissional algo de novo para esse enfrentamento, não posso deixar de tributar-lhe, Gizele, o mais legítimo sentimento de confiança de que um norte vai ser posto no caminho dessa cidade para a superação. É o que sinceramente lhe desejo, mais que um prosaico boa sorte, à hora amarga de assumir essa responsabilidade social que lhe cabe, mas que cabe também a nós, pois seria demais e mais que desonesto dizer-lhe “toma que o problema é teu, e se vira nos 30”. Felizmente Juazeiro do Norte é um município de pouca geografia, como já nos advertia Mons. Murilo, no que isso ameniza, de certa maneira, o impacto ambiental da temporada chuvosa. Mas o que se protelou em muitos anos de omissão, de medo de encarar realidades, para daí colher soluções, nos assombra pelos erros acumulados, a dizer que nem conhecemos o prioritário. Lembro bem o resgate da área das Timbaúbas, elevada à condição de parque ecológico, a timidez dos gestores se escondeu no modo fácil de não ousar para projetar sua complementação como espaço urbano que se emprenharia de equipamentos, para lazer e pulmão para as “águas de março”. Seguramente, na sua visão de urbanista, Gizele, penso que você vai olhar de frente a revisão da legislação sobre a ocupação do espaço urbano, para banir de vez essa visão vesga que nos leva a estender o arruamento da cidade onde já mal cabe a paralela de um carro popular e uma carroça. Percebi noutro dia que inevitavelmente você terá um olhar sobre esses novos e perimetrais caminhos que se abrem no município, aí incluindo a sua Paulo Maia, para circundá-lo, de modo a estreitar espaços e agilizar deslocamentos, livrando o velho centro dos vexames das horas. A mim, muito menos experimentado, sempre mais desconfiado dessas soluções, vejo com otimismo essa ação do governo estadual para abreviar a implementação de soluções criativas e de há muito esperadas, como o anel viário em curso. Esperamos, porque isso é desejável, que seu trabalho, Gizele, e as ações do município contribuam para a preservação do equipamento e que ele não evolua negativamente, como a saturação que parece não ter fim, como se vive na Av. Pe. Cícero.
(Crônica lida durante o Jornal da Tarde, da FM Padre Cícero, Juazeiro do Norte, em 25.01.2017)
BOM DIA!
Continuo transcrevendo nesta coluna semanal o conjunto de sete textos que estão sendo publicados na minha página do Facebook, tratando de questões relacionadas com a atualidade da vida juazeirense, com o objetivo de fomentar uma ampla discussão sobre esses temas de nosso interesse. Os que desejarem contribuir com esse propósito, poderão dispor do espaço na rede social, ou encaminhando sua opinião para o nosso endereço. Muito grato.
BOM DIA! (22) Por Renato Casimiro
Nasci na Rua São Francisco, lado par, a casa pegada a da esquina, depois da Rua São Paulo. Era uma casa muito pequena e estreita, a de número 398. Apenas uma porta e uma janela. Desta porta só me lembro ter saído para a Rua São José. Desta janela comecei a enxergar o mundo, a principiar naquele pequeno trecho de rua, com duas bodegas ao lado e o movimento maior para as bandas da praça Pe. Cícero. Deste primeiro ambiente de vida não consigo lembrar muita coisa. Até mesmo a convivência com os vizinhos mais próximos, como Luscélia e Antonio Corrêa Celestino, Bernadete e Dr. Possidônio da Silva Bem, eu somente lembraria anos depois, nas visitas que fazíamos a esta gente tão querida de todos nós, mais próximos pela relação de compadrio com meus pais. Bernadete e Possidônio foram meus padrinhos de crisma e o tratamento foi igualmente transferido para Luscélia e Celestino, eternamente. Da Rua São Francisco, não esquecerei a existência de um maluco, por nome de “frei Sabugo”, que ingenuamente eu ousei chamar na sua passagem pela rua. De lá, me mandou uma “sabugada” (literalmente, um sabugo de milho) na cara, até hoje dolorida pelo vexame. Não esqueço a Usina de Antonio Pita, vista à esquerda da minha janela, com pilhas e mais pilhas de fardos de algodão, e de alguns tipos, transeuntes, como o velho e simpático barbeiro, Manoel Alexandre, do salão vizinho ao Cine Roulien, que subia a rua bem vestido, paletó e gravata. E do dia em que, finalmente, me mudei para a Rua São José. Na cena inesquecível, uma travessia pela Praça Pe. Cícero carregando algo como um balde e um pau de cortina. Estávamos pelos meados de 1953. Mas, foi da Rua São José que guardei as cenas mais inesquecíveis de minha vida. É bem verdade que não foi tanto assim o tempo em que lá passei, residindo na casa de número 484, junto a minha avó, Dona Eudócia (Neném) Soares da Silva, viúva do “Seu” Antonio Soares da Silva, ambos do berço da civilização das Alagoas – para usar uma expressão desvanecedora me dita recentemente por uma alagoana. Deve ter sido uns 10 anos, se muito. Depois nos mudamos para a Rua Santa Luzia, 268, onde fiquei uns 2 anos para, em seguida, “ganhar o mundo” e só aparecer de volta para visitar a família, de quando em vez. Ainda assim e, exatamente pelo fato de minha família se conservar, em parte, como residente na Rua São José, é que este sentimento, ou este estado de espírito, como se fora velho morador ali, me invade e me perpetua na memória de sua paisagem. Neste livrinho, ainda sob a inspiração do Antes Qu´eu M´esqueça, lhes falo desta ambiência que tanto me tem marcado na vida. Em primeiro lugar, é justo que advirta o leitor que, paradoxalmente, a Rua São José me enseja uma grande simplificação geográfica do Juazeiro e, ao mesmo tempo, uma quase licença poética de considerável amplitude urbana. Falo-lhes da Rua São José, dos anos 50-60, como este significativo latifúndio urbano que vem das primeiras casas da rua, na confluência com a, ainda hoje denominada Rua do Brejo, até e não mais que a antiga Rua Santo Antônio, hoje Pe. Pedro Ribeiro da Silva. E não era para ir muito adiante. Em primeiro lugar porque se vivia sob o olhar vigilante da família. Havia as brincadeiras de rua. Conhecíamos tudo aquilo como a palma da mão, mas a rédea era curta. Meus pais viajavam pelos sertões da Bahia, como ambulantes vendedores de jóias e bordados do Ceará, e o moleque ficava sob a proteção das tias, avó, e da Dina – um capítulo à parte. De outra sorte, e esta é uma descoberta, felizmente tardia, a visão da criança privilegia a enormidade dos espaços do ir e vir, a um tal grau que, somente anos depois, constatamos na maturidade o quanto tudo encolheu nas dimensões do urbano contemporâneo. Então, a Rua São José tornou-se de fato minúscula. Era de costume ter uma expressão, como se adiante tudo fosse o arisco, uma periferia que qualificava os locais distantes com um enorme preconceito. Por este final virtual de rua, no topo do cruzamento da Santo Antonio, já víamos a baixada, as poucas casas existentes, até ao encontro do muro do Ginásio Salesiano. Na primeira justificativa, não há como fugir que a Rua São José existe como lugar garantido no mapa, e foi para mim o ponto central da circulação por um mundo de descobertas, de traquinices, do encontro com tipos, lugares e acontecimentos marcantes. Mas, o espírito de Rua São José, assim penso, permeava a redondeza, alargando em muito as suas relações no plano urbano. Rua São José tinha, acredito, a dimensão de um bairro, como assim poderia ser notado pelas outras turmas, com as descrições sumárias de seus lugares: a turma do Salgadinho, a turma das Malvas, a turma do Bosque, a turma da Santa Rosa, a turma da Pracinha, a turma da Rua do Cruzeiro, a turma da Rua Grande, e por ai. Desejo marcar este roteiro sentimental com um relato disto tudo. Falarei de figuras notáveis, como os prefeitos desta época - Dr. Antonio Conserva Feitosa, José Geraldo da Cruz e José Monteiro de Macedo, de José Pedro da Silva, nosso vizinho, industrial no ramo de curtume, de Dona Beatriz Santana, viúva do juiz Juvêncio Santana, que casou meus pais, do velho português Angelo de Almeida, proprietário da velha Padaria Luzitana, um dos marcos da Rua, do tabelião Expedito Pereira e seu irmão Agenor, dos nossos compadres Dolores e José Figueiredo, do pediatra Dr. Nei – como das figuras mais brilhantes daqueles tempos, de nosso primo, José Teófilo Machado, sobretudo muito estimado por meu pai, do Pe. Cícero Coutinho, o capelão do Abrigo dos velhinhos, de dona Maria e Manoel Francisco Germano, os donos do Faustino, do Maroto e da Lagoa Seca, de “seu” Firmino Teixeira, dono de uma das mais apreciadas bodegas da Rua, de Luiz (Lulu) Pereira e Silva, dos meus padrinhos de batismo Maria das Dores e José Gonçalves Magalhães, de dona Clotilde e Argemiro Mota de Carvalho, e de famílias como os Aires, os Teixeira, os Guimarães, os Flor, os Melo, os Bezerra, etc. Mas, principalmente, de três ilustrados moradores, inesquecíveis. O primeiro, mesmo não o tendo alcançado em vida, não posso deixar de referir ao Pe. Cícero Romão Batista, que ali teve pelo menos quatro cantos de morada. E meus avós maternos, Dona Neném e Antonio Soares. Será sempre por estes três marcos memoriais de minha existência que a Rua São José terá o lugar de destaque no meu imaginário. Importante para mim também é situar este relato nas relações familiares, nos cenários de inúmeras casas de famílias, além do ambiente do nosso convívio, e marcado pela presença daquilo que não se resumia apenas em residências. Falarei das bodegas que nos supriam de tantos gêneros, dos bares, das garagens e de oficinas que consertavam carros e faziam móveis, de escolas e instituições. Impossível não lembrar as festinhas familiares nas datas de renovações, aniversários dos chefes das famílias, as tertúlias, e os ofícios religiosos. Recentemente fiz um passeio sobre a Rua São José, como nunca antes havia feito. Percorri-lhe estas quadras de referência, me deleitando em passos vagarosos com a memória que rebuscava a cada indício de um detalhe que me remetesse àquela década de existência. Deparei-me afetuosamente diante daquele casario, quase sempre tão familiar. Há nos espaços da Rua São José marcos ainda indeléveis desta memória. Por vezes, com a desfiguração de alguns marcos, não pude deixar de sentir um lamento profundo que permeia a vida do lugar. Sente-se a cada passo a ausência terna de gratas figuras. Somente o nosso imaginário pode fazer ressurgi-los diante desta desorganização urbana que permitiu a invasão de tantas oportunidades de negócios, como bares, lojas, repartições, consultórios, hospitais, hotéis, pousadas e ranchos, no outrora pacato recanto de moradias familiares. Esse passeio lírico será o objeto permanente deste exercício de memória. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 22.01.2017)
BOM DIA! (23) Por Renato Casimiro
Foram duas as ocasiões em que pensei objetivamente em escrever sobre a minha vida. Antes, achava que isto só estaria reservado aos indivíduos que atingem uma certa idade, numa maturidade de mais de setent´anos, e aí, certos de terem efetivamente vivido intensamente, podem derramar memórias, risos e lágrimas, em papel que tudo aguenta. A primeira vez foi na festa do Natal de 1972, quando recebi de meu pai um pequeno álbum, destes que os pais iniciam a preencher por ocasião do nascimento de um filho, principalmente se é o primeiro. Aí se vai colocando uma porção de dados, fotos, presentes, os contornos da mão e do pé, e tudo mais que diz respeito ao rebento. No meu caso, meus pais iniciaram um, em cuja capa está dito “O Primeiro Ano de Antônio Renato Soares de Casemiro”. É um destes álbuns muito modestos, presenteado por empresa de produtos para recém nascidos. Ele encerra uma porção de páginas para ir completando, à medida que o pimpolho vai aprontando. Numa última página, em folha anexa datilografada, a que meu pai deu o título de Reminiscências, relatando sumariamente o seu conteúdo, ele finaliza, certamente no dia 26 de setembro de 1972, escrevendo: “Exatamente hoje, são decorridos vinte e três anos de sua existência, quando encerro este álbum com as anotações que se seguem: Dr. Antonio Renato Soares de Casimiro, Químico Industrial e bacharel na matéria. Engenheiro Químico, formado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Ceará. Que Deus o abençoe e o faça muito feliz por toda sua vida. Seu pai, Luiz Gonçalves Casimiro.” A segunda vez foi, recentemente, em meados de janeiro de 1998, quando estava para realizar a minha inscrição num concurso de professor titular na área de Ciência e Tecnologia de Alimentos, do Departamento de Tecnologia de Alimentos, do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará. Tive que apresentar um memorial que, outra coisa não seria, senão um curriculum vitae comentado, contendo os fatos mais relevantes de minha vida, desde o concurso vestibular, em 1968, e indo até este último instante de 1998. Depois, portanto, de ter cumprido esta exigência, fiquei pensando: porque não completar o relato, retrocedendo até quando fosse possível ? Isto me faria, provavelmente, iniciar este depoimento ao instante do meu nascimento, ou talvez a alguns anos antes, para melhor situar os personagens que irão ilustrar estas estórias. De modo que, é nas páginas deste pequeno álbum de infância que vou apanhando os dados que me permitirão rever muitas informações sobre a minha origem. Na página 2, a reprodução do Ser Mãe !, de Coelho Neto, cujos versos de tão conhecidos viraram frases muito emblemáticas: “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração ! Ser mãe é padecer num paraíso !” Meu pai anotou na pagina 3 que “o bebê Antônio Renato Soares de Casemiro nasceu em Juazeiro do Norte, Estado do Ceará, às 7 horas e 25 minutos do dia 26 de setembro de 1949, na casa 398 da rua São Francisco.” Ainda não tínhamos hospital, casa de saúde, ou casa de partos, de modo que nasci mesmo em casa. E, no livrinho, para que não restasse dúvida posterior, assinaram, minha mãe – Doralice Soares Casimiro, meu pai – Luiz Gonçalves Casemiro. Espaço reservado havia, mas ficou faltando a assinatura do médico pediatra – Dr. Possidônio da Silva Bem. E, também, da parteira, Dona Edith Cabral, que teria me arranjado, involuntariamente, o maior problema, logo a seguir. O cordão umbilical parece não ter sido bem amarrado, fato que foi identificado pelo médico na primeira visita, logo após o nascimento. Dr. Possidônio encontrou um farto sangramento o que o levou a dizer que poderia ter morrido, caso não houvesse uma rápida intervenção para estancar a hemorragia. Em família, passou-se a acreditar que eu havia renascido com a pronta ação do Dr. Possidônio. Ao meu nome, que inicialmente era apenas Antônio, pois neto de dois Antônios, foi acrescido o Renato, provavelmente por sugestão de minha tia Ivaniza. Quanto ao meu nome, somente em 1964, já concluindo o curso ginasial, ele foi discretamente corrigido, em razão dos dados constantes no registro civil, cujo original conservo comigo até hoje. Essa estória fica para depois. Mas, voltemos ao fio da meada. Nas anotações de meu pai, na página 4, ele cita seu nascimento, em 6 de dezembro de 1916, filho que era de Antônio Alves Casemiro (Tonheiro), nascido no sítio Carnaúba, distrito de São Francisco, no município de Sousa, PB, em 8 de fevereiro de 1877 (faleceria em 3 de setembro de 1958) e de Ana Gonçalves Casemiro (Santana), de mesma naturalidade, em 14 de junho de 1877, já falecida desde 29 de janeiro de 1945. Minha mãe, nascida em Juazeiro do Norte, em 19 de março de 1917, era filha de Antônio Soares da Silva, alagoano de Assembléia, e de Eudócia (Neném) Soares da Silva, de Pilar, Alagoas. (Veremos adiante que meu pai cometeu pequena imprecisão ao citar a naturalidade de meus avós). A família não registrou com quem mais pareci, por esta data. Contudo, indicaram que os cabelos eram lisos e pretos, como os olhos. O nariz era pequeno e achatado. E a boca era de tamanho regular. Nasci medindo 55 centímetros e pesando 3,5 kg. Minha mãe teve a paciência, diria melhor, o prazer de ir anotando o peso e a altura até o 7º mês. Daí por diante, nada consta. Ela deve ter achado isto uma chatice. Mas, cresci sabendo que estas medidas serviram para estimar a minha definitiva altura que, segundo os cálculos de minha mãe, beiraria 175 cm. A aritmética de minha mãe era simples: teria o dobro da altura do meu segundo aniversário. Foi o que aconteceu. As primeiras visitas, não podiam deixar de ser da família. Minha avó, Dona Neném, trouxe os filhos Etercília, Dosanjos, Ivaniza, Silvanir, Zuleica, Maria e José. Recebi também a visita de Dona Bernadete Bem, esposa do médico Possidônio. Ambos seriam os meus padrinhos na cerimônia do crisma, vários anos adiante. Hosana e Aderson de Morais Brito, ela colega de meu pai no Banco do Juazeiro, Luscélia e Antonio Corrêa Celestino, nossos vizinhos, Dolores e José Figueiredo, Dona Lobélia Cavalcanti, esposa do coletor Estelita Silva, e suas filhas - uma delas, Lobelita, também colega de meu pai no Banco. E Vicente Vilar e senhora, ele também colega de meu pai no Banco. Pelo correio, minha mãe anotou que meu nascimento foi saudado por dona Bárbara Augusto, do Recife, a mãe de um dos meus pediatras, o inesquecível Dr. Francisco Tavares (Dr. Nei). Os padres jesuítas, Antonio e Manoel Germano Filho, além do primo Hamilton Soares da Silva (filho dos tios Zuza e Cândido Lopes da Silva), de São Paulo, mandaram telegramas. Fui batizado no dia 23 de outubro de 1949, na Igreja-Matriz de Nossa Senhora das Dores. O oficiante foi o Vigário, Monsenhor Joviniano da Costa Barreto. Meus padrinhos na cerimônia de batismo foram Maria das Dores Germano Magalhães e José Gonçalves Magalhães. Nos registros de família, minha mãe anotou que a primeira travessura foi aos 6 meses e 26 dias, em 31 de abril de 1950. Já engatinhando, enquanto minha mãe arrumava a estante da sala, eu puxei a toalha e quebrei o jarro de flores. Minha mãe lembra que “mamãe” foi a primeira palavra pronunciada. Mas, não anotou quando foi isto. Não esqueceu, entretanto, que de um sorriso, em 7 de maio de 1950, aos 7 meses e 11 dias, ela percebeu que erupia o primeiro dentinho. Algumas informações não foram completadas, mas para mim foi o essencial. Quando recebi este pequeno álbum de meu pai, não pude me conter e fui a muitas lágrimas, vendo a foto que foi colada – um garotinho de poucos meses, sentado num carrinho de madeira, junto a coluna da hora, da praça Pe.Cícero, certamente no início do ano de 1950. Um ano santo, mas também de uma tragédia enorme: Mons. Joviniano, o mesmo que casara meus pais, e oficiara meu batismo, tinha sido assassinado no lançamento da pedra fundamental do Santuário São Francisco das Chagas, por um maluco. Ele era o vigário de Juazeiro do Norte, e por muitas vezes havia sido advertido por amigos que Manoel Pedro, poderia cometer uma violência. Não faltaram avisos. O Manoel Pedro tinha uma rixa com o vigário, pois queria por fim que o mesmo o casasse com Vilani, filha de Preciosa Rodrigues. Mons. Joviniano sempre se saia afirmando que o maluco era inofensivo. A facada certeira, e fatal, em meio a grande ajuntamento popular nos Franciscanos, e até a presença do bispo D. Francisco de Assis Pires, trouxe grande comoção na cidade. Esta é uma estória de que falarei mais adiante. Quando ainda não completara o primeiro ano de vida, em 2 de setembro de 1950, nasceu minha irmã Ana Célia. Para sempre, era a Dida, a Didi, irmã querida, que tanto me emocionaria. Meus pais não mexeram no time que começou ganhando e escalaram os mesmos Dr. Possidônio Bem e Dona Edite Cabral. Ainda não havia hospital e assim também nasceu a Dida, em casa, na mesma Rua São Francisco, 398. Não sei exatamente porque assim foi batizada, senão porque Ana era o nome da mãe de meu pai. E Ana Célia, ainda hoje, acho, nem mesmo ela sabe. Um aborto na vida de minha mãe interrompeu o crescimento da família. Estava grávida, em 1951 e viu uma pessoa com grave defeito físico, um entrevado que se arrastava pelo chão, num dia de sábado, de feira em Juazeiro. Ficou tão chocada e sensibilizada que acreditava isto lhe trouxera a indisposição que provocou o aborto. Ela mesma um dia, já na minha juventude, me contou, sem muito detalhar o que lhe acontecera. Anos depois passou por alguma cirurgia, em tratamento que realizou em São Paulo. Enfim, a família ficou no casal Nato e Didi. Entre os anos 51 e 53, eu lembraria de alguma coisa desta época, dos meus primeiros anos na morada da rua São Francisco, quase esquina da rua São Paulo. A casa modesta, de porta e janela, muito estreita, construída como quase todas daquele tempo, com um corredor entre as duas salas, separando os dois quartos, pequeno quintal. Guardo uma fotografia tirada naquela janela por onde contemplei a cidade, o povo que passava, com especial destaque para “Seu” Manuel, o barbeiro do salão ao lado do Cine-Teatro Roulien. Baixo, moreno, usando óculos, sempre de paletó, andar maneiro, lembro de algumas vezes ter dado escândalo na sua cadeira, aos procedimentos de corte baixinho, na máquina e na navalha. O cego Santino, magrinho, cabelinho branco, falando sem parar, voz estridente, andando sozinho, de bastão que vasculhava os obstáculos da caminhada. E o doido frei Sabugo. Foi dele que recebi solene “sabugada”, em resposta ao grito que dera para chamá-lo por tão aviltante apelido. O culpado foi o tio José que me ensinou o nome do maluco. Nunca me esqueci deste fato. Nossos vizinhos eram: do lado direito Luscélia e Celestino, e seus filhos Pedro, Ana Lusce, Nicácio, Tarcísio e José Roberto; do lado esquerdo, seu Zuza e dona Mocinha e seus filhos Luiz, João Bosco e José. Seu Zuza tinha uma bodega em frente, onde comprávamos os mantimentos da casa e eu adorava os doces, como bombons, rapadurinhas, tijolos de leite, cocadas, barrinhas de goiaba e banana, pirulitos, sem esquecer os pães de ló. Era Seu Zuza, que em tudo prestava atenção, vigiava-me nas traquinagens da janela. Freqüentemente vinha correndo a nossa casa, para avisar que alguém a meu pedido, me pegara da janela e me punha na calçada, onde podia “aperrear” um sapo que inchava num canto de parede, ou porque já estava montado no jumento que trazia água para as residências, dando uma voltinha pela rua. A família de Seu Zuza se tornou muito amiga, e eu de seus filhos. Anos mais tarde, no colégio Salesiano, fui colega de José (Marques da Silva), que infelizmente faleceu prematuramente. Mais adiante, indo para a rua da Glória, ficava a casa de Dona Bernadete e Dr. Possidônio Bem. Pelos problemas de saúde da infância, era a Possidônio que minha mãe recorria quase sempre. Ia a seu consultório, na mesma Rua São Francisco, em frente a praça, com uma certa frequência, pois sempre tive problemas de amigdalite e isto durou até 1968, quando então foi o jeito retirá-las por cirurgia. A Rua São Francisco, como veremos, não era um logradouro de pouca experiência para a família. Os Soares aí já estavam desde 1916. Na esquina, nos dois lados, em frente à bodega de Seu Zuza, havia a P. Machado, usina de descaroçamento de Algodão, gerenciada por Aderson de Morais Brito. Lembro de ter ficado muito tempo pela janela, vendo o movimento de cargas na usina e ouvindo o barulho monótono das máquinas, enfardando pluma. Mais adiante, havia a outra Usina, a de Antonio Pita, gerenciada pelo tio Irapuan Pimentel. A mudança para a rua São José foi algo muito marcante para a minha vida. Lembro de algumas cenas desta mudança, indo com alguém, levando objetos de casa para a nova casa, através da praça Pe. Cícero. A nova casa, vizinho de minha avó, Dona Neném, ficava a uns 500 metros da velha casa. Mas, havia algo mais fascinante, era morar junto da vovó e das tias. Eu adorava a casa, sempre muito arrumada e limpa, havia um cheiro invulgar. Eu olhava para tudo aquilo e dizia num ar de espanto: a casa da vovó é tão orrrrrganizada!... Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 23.01.2017)
BOM DIA! (24) Por Renato Casimiro
Quando fomos morar na Rua São José, foi para residir no número 484, vizinho de minha avó Nenén Soares, e disso já falei. Nos primeiros momentos de nossa família na Rua, em 1938, o número 484 era um casebrezinho no terreno. Meu avô o adquiriu e fez a reforma, transformando-o numa casa mais larga e adequada aos interesses da família, acomodando os filhos. E estabeleceu uma ligação entre as duas, com uma porta na altura das salas de jantar. Com os anos, casamentos e mudanças dos filhos para São Paulo reduziram drasticamente o tamanho da família na Rua. A casa, então, foi cedida aos meus pais por aluguel. Foi assim, então, que nos mudamos da Rua São Francisco. Quando minha avó faleceu, meu pai vinha se preparando para ali permanecer junto às tias Dosanjos, Zuleica e Maria, adquirindo o imóvel. Era do agrado de minha mãe permanecer na vizinhança de suas irmãs, sobretudo naquela hora em que lhes faltava a presença respeitável e tão familiar da matriarca Eudócia Soares. No corredor de nossa casa já vinham sendo armazenados os materiais do piso, com vários tipos de mosaicos, com os quais se substituiria o velho piso em tijolo. E para justificar ainda mais este interesse de ali permanecer, meu pai até comprou a garagem em frente, fazendo-lhe uma reforma, para guardar o carro da família. Mas, a pretensão de adquirir a casa da RSJ não teve bom andamento e meu pai, descontente, terminou por comprar a casa de número 268, da Rua Santa Luzia, nos levando para lá em 1962. Anos depois, a casa nos foi vendida pela tias, herdeiras de Neném Soares. Foi alugada algumas vezes e, finalmente, minha irmã Ana Célia ali fez funcionar uma escolinha de alfabetização. Depois, meu pai a reformou, e minha irmã, já casada, lá residiu por uns anos. Com a morte dos meus pais, ela me coube na partilha do espólio. Nossa prima, Goreti, que já vinha residindo na casa, manifestou o interesse de adquiri-la, e o negócio foi feito. É com quem ela hoje se encontra. Mas, nos anos 50, a casa da RSJ era uma morada simples: sala de visitas, dois quartos, sala de jantar, despensa, cozinha e quintal (com instalações sanitárias). Sua fachada era de uma porta larga e três janelas. O plano da casa se elevava de mais de metro no da calçada. Era quase toda de piso de tijolo. Apenas a sala e o hall de entrada já estavam revestidos com mosaico e cimento polido. Ao se entrar, à esquerda, havia a sala de visitas. Além do mobiliário comum, cadeiras simples e de braço, e centro de sala, havia apenas uma estante à nossa frente, contendo todos os livros da casa. Isto merece citação pois este acervo seria uma ferramenta importantíssima para o meu aprendizado. Um corredor ligava o hall de entrada à sala de jantar, passando pelos dois quartos. No primeiro, meus pais. No outro, eu e minha irmã. Depois, já crescidinho, meu quarto passou a ser a sala de visitas, com a cama espremida num canto, sem nenhuma privacidade. Antes, Dida e eu, tínhamos redes. Depois, em camas “Patente”. No quarto dos meus pais, um mobiliário simples e comum, com uma cama grande em madeira envernizada, guarda roupas e “penteadeira” Além disso, um enorme e pesado cofre, dos tempos em que meu pai, viajante e vendedor ambulante de jóias em ouro e pedras preciosas, necessitava proteger o estoque, entre uma viagem e outra, pelo interior da Bahia. Em cima, um rádio Mullard e sua bateria, com um “tunga”, que a carregava quando vinha a energia elétrica municipal, no fim da tarde. Os quartos eram grandes e tinham cinco portas. No primeiro, duas portas para a sala, duas para o segundo quarto e uma para o corredor. No segundo, duas portas para a sala de jantar e outra para o corredor, além do que já foi dito. Telhado muito alto, no estilo “meia-água”. As paredes internas não alcançavam, no meio da casa, nem a metade do pé direito. Quero crer que isso era o refrigério da morada. Já mais taludinho, me trepava por uma meia parede da sala de visitas e alcançava o topo das paredes internas da sala de visitas por onde circulava em cuidadoso exercício de equilíbrio, sob os protestos da Dina. Na sala de jantar, além de mesa e cadeiras (uma de balanço) a “cristaleira” com a louças e talheres da casa, e, engraçado, uma bandeja de madeira presa à parede, com uma belíssima pintura de uma garota e um gatinho, recoberta com um vidro. A autora da pintura fê-lo presente de casamento para minha mãe. No canto deste quadro as iniciais de sua grande amiga: Maria Assunção Gonçalves. Entre a sala de jantar e a cozinha havia um compartimento que chamávamos de despensa. Ali se guardavam compras e roupas, mas era também minha oficina e quarto de dormir da Dina, sem qualquer privacidade. Depois do jantar, ali recolhida em sua rede, enquanto íamos brincar na calçada, desfiava rosários à Nossa Mãe das Dores, pela noite a dentro. A cozinha era a mais modesta possível. Era aberta para uma área interna, que às vezes servia de banheiro. O fogão era de alvenaria, com chaminé presa na parede enfumaçada. Queimava-se lenha e, mais frequentemente, carvão, cujo depósito ficava no quintal. Além disso, e de especial, um pilão de madeira com sua enorme mão, onde se fazia uma das melhores paçocas do planeta. Os utensílios da cozinha eram quase todos de artesanato utilitário de Juazeiro do Norte. Uma chaleira de flandre, frigideiras de chapa de ferro, panelas e cuscuzeira de barro (incluindo-se as tampas, ou como dizíamos os “textos”), colheres de pau, pegadores de brasas, abanadores de palha, pequeno fogareiro de ferro fundido, rodilhas de saco de farinha do Reino (trigo), martelos de madeira, espetos, facas e “trinchetes”. No quintal havia uma área coberta para alguns serviços domésticos. No canto direito, dividida com a casa de minha avó, a cacimba. E no fundo, as instalações sanitárias: sanitário separado de banheiro (“duas casinhas”). Nesse território, além dos viventes da casa, somente um outro ser transitava livremente: era o Tareco, um gatinho muito miudinho, magrinho e muito feio que nos apareceu, sabe-se lá por onde, e que Dina passou a cuidar do bichinho com muito zelo. Nos primeiros tempos, toda a água da casa ia para os potes colocados num suporte de madeira na cozinha. Havia o dos serviços gerais e o de beber e cozinhar. Deste, ao seu lado, pendurado na parede, um caneco de flandre, com cabo, em cuja boca havia uns dentes de flandre feito espetos para não se levá-lo à boca. Dina puxava água da cacimba e ia levando nos baldes para a provisão doméstica. Depois, meu pai instalou uma bomba de acionamento manual, somente para uma caixa d´água do banheiro. Só fui conhecer água encanada na casa da Rua Santa Luzia, com a reforma que meu pai fez. Dos meus afazeres diários, um era bombear água para a caixa. No fim da tarde eu ouvia o grito de Dina: “- Corre lá, Nato. Vai encher a caixa. Teu pai tá chegando e não tem água prá tomar banho !”. No começo dos anos 60, com a chegada da energia de Paulo Afonso, meu pai começou a “modernizar” a casa. Comprou geladeira (Frigidaire, na loja dos Vianas), fogão a gás butano Brasil, liqüidificador Arno e rádio Philips. A iluminação em toda a casa era do padrão mais simples, e vinha do Centro Elétrico: lâmpadas incandescentes de 40 velas. Já era muito melhor que aquelas lamparinas queimando querosene pela madrugada. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 24.01.2017)
BOM DIA! (25) Por Renato Casimiro
Relevo como de grande importância para o conhecimento deste ambiente de Rua São José nos anos 50-60 o livro de Carlos Alberto de Almeida Marques, publicado anos atrás. Ao referir às brincadeiras de seu tempo de menino, praticamente resgatou o tema quanto a citação da diversidade de jogos e brincadeiras que nós, na RSJ, também praticávamos. Afinal, RSJ, e as imediações da Conceição, Sta. Rosa, Pracinha, Socorro, etc., era uma coisa só, nos hábitos e costumes. Por exemplo, era comum a fabricação de nossos próprios brinquedos, em materiais diversos, principalmente em madeira e metais. Os patinetes eram feitos de madeira com rolamentos de automóveis. O grande desafio era o de se conseguir rolamentos grandes, de caminhões, mas as oficinas a que tínhamos acesso, as poucas da RSJ, não faziam consertos em caminhões, de modo que os rolamentos eram pequenos, talvez entre 5 a 10 cm de diâmetro. Outra coisa era a articulação do guidom com a base do patinete. Mais freqüentemente isto era resolvido com material de couro ou borracha da oficina de calçados de Seu Raimundo José (Dona Lozinha), pais do Carrapeta (Carlos Oliveira), e que ficava na Rua São João, quase esquina da RSJ. O patinete era simples e deslizava bem pelas calçadas, geralmente lisas e de bom cimento. Não era fácil contornar a proibição dos donos das casas que não queiram aquele barulho às suas portas. Principalmente aqueles que tinham calçadas irregulares, ou mosaicos, onde o barulho se acentuava. A calçada de José Pedro da Silva, por exemplo, era enorme, mas de um mosaico que propiciava um barulho infernal. Para construir um que pudesse superar este problema, meu pai me deu a idéia e pude resolvê-lo do seguinte modo: usei, não mais rolamentos, mas duas rodas do velho velocípede que, já encostado, ganhara em um Natal passado. Então, foi um passeio. Uma novidade para o quarteirão: um patinete silencioso, com rodas de ferro recobertas por borracha, e que não despertava a vizinhança de sua tranqüilidade, sobretudo depois do almoço. Foi tanto ciúme dos colegas do quarteirão que nem lhes conto quantas vezes tive que fazer fila para ceder uma voltinha aos que, mais gaiatos, me garantiam: não passo da calçada da Padaria! Um dia apareceu na RSJ uma variante, onde se podia sentar numa prancha com quatro rolamentos, dois dos quais articulados num eixo dianteiro, onde o motorista, com os pés, fazia pequenas manobras com o carrinho. Mas, era necessário um auxiliar para empurrar. Outra brincadeira de época era o jogo de castanha de caju. Os frutos começavam a aparecer entre agosto e setembro e já íamos guardando as castanhas, secas ao sol. O jogo consistia em acertar uma moeda, às vezes uma castanha também, posta em pé com ajuda de cera de abelha ou pequeno monte de areia, numa calçada de cimento bem liso. As castanhas eram arremessadas pelo impacto do dedo indicador ou médio da mão direita, flexionado, apoiado no dedo indicador da mão esquerda. Assim as castanhas alcançavam impulso para atingir o alvo indicado, a uns cinco ou mais metros de distância. Quem derrubava a moeda ia “bancar” o jogo dos demais, dois ou às vezes três, que ficavam tentando acertar. As castanhas que não acertavam o alvo passavam à propriedade do “banqueiro”, até que todos, menos um, “alisassem”. Ai vinha a negociação com compra e venda de castanha. E outros acertos, tais como, por uma distância maior, apostas, etc. Era um jogo muito apreciado para os fins de tardes da RSJ, nas calçadas de lado par, escondido do sol forte das tardes de fim de ano. Fazer pequenos carrinhos e, freqüentemente, caminhões de maior porte, eram uma boa brincadeira. Principalmente sair com eles pelas calçadas depois que os deveres escolares haviam sido cumpridos. Não eram carros maravilhosos, como os fazia Luiz Aécio Germano Magalhães, em sua casa no quarteirão seguinte ao nosso. Ai já era coisa de um “engenheiro” brilhante que se esmerava nos detalhes da construção de cabines, modelo dos hoje velhos, caminhões FNM, e carrocerias bem trabalhadas, com grades que abriam e eram feitas com a precisão de um artista de maquete. Sem falar, é claro, em outros detalhes como a suspensão em requintados feixes de molas e até uma iluminação à base de baterias de lanternas. Ele deve lembrar como olhos extasiados contemplavam estas verdadeiras obras de arte. Eu freqüentei muitas vezes, quase diariamente, esta oficina do Aécio, aberta em suas férias quando voltava à terrinha e era ali que colhia idéias e detalhes, e procurava desenvolver alguma habilidade com este exercício criativo, inato a um dos mais brilhantes moradores da RSJ. É bem verdade, por tão pouco tempo como eu. Fazer algumas armas para as brincadeiras era um passatempo preferido. Os moleques da RSJ se encontravam nas sessões de cinema do Avenida, do Capitólio e do Eldorado. Não falo do Roulien, pois embora existisse quando dos primeiros tempos da minha passagem pela RSJ, não lembro de tê-lo freqüentado. Então, nestas sessões as grandes atrações eram os filmes e seriados de “cowboys” ou as aventuras de Tarzan. De volta ao nosso ambiente era inevitável não tentar reproduzir aquelas cenas. Revólveres, pistolas, espingardas e “badoques” (arco e flecha) eram feitos aos montes. Os primeiros, nós os fazíamos em madeira com carretéis de linha que se obtinha em casa, com a freqüência dos trabalhos em máquinas de costura. Um êmbolo de madeira, impulsionado por uma borracha de câmara de ar atirava o projétil (caroço de feijão) metido no tubo do carretel, preso ao corpo da arma feito em madeira, segundo um desenho aproximado de arma real. Já os arcos e flechas se faziam com galhos de árvores que trazíamos da Boca das Cobras, com fio resistente, mais comumente usado para arremessar pião ou carrapeta. Ao lado do mercado havia umas casas que as vendiam. Eram as ponteiras. Já as flechas, bem, estas eram as de pendão de cana de açúcar. Melhor era ir buscá-los no sítio de Seu Zé de Melo, no Salgadinho. Depois de cortados a um bom tamanho, tinha-se o cuidado de aplicar uma proteção de cera de abelha na ponta. Felizmente nunca houve acidentes, mas a testa do “cara pálida” Carrapeta ardeu algumas vezes. De vez em quando apareciam umas flechas com pontas metálicas, como pregos metidos. Corríamos as léguas, antes que alguém fosse acertado ou tivesse o olho vazado. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 25.01.2017)
BOM DIA! Por Renato Casimiro (26)
Durante os meus anos de Rua São José, eu vivi o clima de duas campanhas políticas eleitorais. Ao me mudar da Rua São Francisco para lá, era o Sr. José Monteiro de Macedo, nosso 23º Prefeito, no período de 31.01.51 a 24.03.55. A eleição deste candidato do Partido Republicano se deu em 03.10.50, sucedendo ao seu correligionário Dr. Antonio Conserva Feitosa. Nas eleições de 1954, Dr. Feitosa desejava voltar ao governo municipal, mas o diretório local da União Democrática Nacional (UDN) recebeu informações oficiais de que Dr. Feitosa era fichado na Polícia pernambucana e tinha participado de dois movimentos subversivos, de cores anarquista e integralista, nos anos 1930 e 1938. Na disputa Zé Geraldo x Dr. Feitosa foi feita uma paródia com o samba É com esse que eu vou..., de Pedro Caetano: Em Feitosa ninguém deve votar/ Porque ele não soube governar/ Pois mostrou para os romeiros/ Piedoso se fazendo Ou! Bah!/ Porém a Prefeitura está devendo./ É com esse que eu vou... Eu quero ver Zé Geraldo triunfar/ Junto com Dr. Mozart/ E Zé Monteiro perder/ E o Feitosa triste chamando vovô/ A turma toda dizendo – ou bah!/ Foi Mozart que ganhou. / É com esse que eu vou... Foi uma campanha muitíssimo disputada e José Geraldo da Cruz, da coligação UDN-PTB, logrou sucesso, sendo eleito em 03.10.54. Seu mandato durou de 24.03.55 a 24.03.59. Na campanha seguinte, meu pai nos transmitia um grande entusiasmo pela disputa eleitoral (eleições gerais no Estado do Ceará) em 1958. Para a precisão destes dados, usei as valiosas anotações de “seu” Luiz Casimiro, com documentos que disponho no arquivo. Um ano dificílimo, porquanto seco (a pior seca que viveríamos naquele período), onde uma campanha eleitoral ganhava uma característica muito particular, no tocante a práticas do voto de cabresto, corrupção, prepotência e tudo mais. Era o candidato escolhido de meu pai o seu primo José Teófilo Machado, pelo Partido Trabalhista Brasileiro(PTB). Como vice da chapa figurava Antonio Corrêa Celestino. Era, portanto, uma chapa com a qual meus pais se identificavam muito, pois ligados a ambos por laços de compadrio. A votação ocorreu no dia 03.10.58. Juazeiro, com uns 11 mil eleitores, tinha 42 sessões eleitorais. Destas sessões, a Rua São José tinha apenas uma, a de número 29, que funcionava no prédio do Museu Padre Cícero. Meu pai confeccionou mapas para acompanhar a marcha da apuração que se realizava na Associação Comercial. Para o Governo do Estado, Parsifal Barroso (6.000 votos) venceu Virgílio Távora (3.265). O Vice Governador eleito foi Wilson Gonçalves (5.365), derrotando Acrísio Moreira da Rocha (3.240). Para o Senado da República, Juazeiro votou em Menezes Pimentel (5.301) preterindo Olavo Oliveira (3.224). Na suplência ficou Valdemar Alcântara (4.717), superando Raimundo Ivan (3.154). Os Deputados Federais mais votados foram: Leão Sampaio (3.961), José Dias de Macedo (2.121), Colombo de Souza (1.326) e Antonio Alencar Araripe (423). Dentre os Deputados Estaduais, foram sufragados: Cap. José Adauto Bezerra (3.545); Wilson Roriz (2.369); José Monteiro de Macedo (907); Almino Loyola de Alencar (708); Gregório Callou de Sá Barreto (574); Carlos Jereissati (255) e Odílio Figueiredo (234). Para a Prefeitura Municipal o resultado foi: Antonio Conserva Feitosa (4.403), Raimundo Viana (2.792) e José Teófilo Machado (2.201). Para Vice Prefeito, Antonio Ribeiro de Melo (3.442), José Gonçalves Almeida (2.840) e Antonio Corrêa Celestino (2.517). Para a Câmara Municipal, pelos respectivos partidos, os resultados foram: União Democrática Nacional (UDN) – Orlando Bezerra de Menezes (597), José Simplício de Barros Galvão (574), José Alves de Souza (Cazuza) (392), Carlos Alberto Mendonça (320), Antonio Fernandes Coimbra (Mascote) (310), Carlos Alberto da Cruz (270), Antonio Ferreira da Silva (269), Mozart Cardoso de Alencar (201), José Florêncio de Vasconcelos (195), Miguel Coelho Rocha (191), Antonio A. Callou (188), Gumercindo Ferreira Lima (161), Margarida Pereira Lima (136), Zilton Pereira (91), Belarmino N. Cruz (60), Eudes Magalhães (36), José Matos Franca (32). Pelo Partido Social Democrático (PSD), os votados foram: José Valdy Sabiá (289), João Iderval Alencar (277), Sebastião Lacerda (264), José Sobreira da Silveira (252), Pedro Santana Gouveia (251), Teodoro de Jesus Germano (250), Dr. Francisco Augusto Tavares (Nei) (196), Argemiro Mota de Carvalho (176), Raimundo Tavares Neves (144), Francisco A. Monteiro (140), Luiz Gonzaga Lima (136), José A. Araújo (130), Zuila Morais (121), Joaquim Targino (115), Maria Izidório (87), Francisco A. Ferreira (65). Pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foram votados: Luiz Dantas de Macedo (367), José Camilo da Silva (292), Raimundo Sá e Souza (231), Geraldo Menezes Barbosa (225), Antonio Araújo Silva (200), José Neri Rocha (200), Paulo Silva (128), Luiz Matos Franca (111), Expedito A. Miguel (110), José Soares Silva (107), Manoel Ferreira Neto (63), Lindalva Fernandes (55), José Guilherme Silva (Piaba) (27), Petronilo P. Araújo (21), Sebastião F. Brito (18). Pelo Partido de Representação Popular (PRP), os votados foram: Manoel Leite Teixeira Filho (23), Edmundo Morais (146), Cipriano Casimiro de Oliveira (80), Generosa Ferreira Alencar (70), Maria Alice Cruz (61), Manuel Caldas (49), Vicente Tomás Ferreira (25), Francisco Roberto (25), Valdo Figueiredo (21), João Callou (21) e Emídio Rodrigues (12). No período de 1959 a 1962, a Câmara Municipal foi integrada por 16 eleitos: Orlando Bezerra de Menezes, José Simplício de Barros Galvão, José Alves de Souza, Carlos Alberto Mendonça, Antonio Fernandes Coimbra, Carlos Alberto da Cruz, Antonio Ferreira da Silva, José Valdy Sabiá, João Iderval Alencar, Sebastião Lacerda, José Sobreira da Silveira, Pedro Santana Gouveia, Luiz Dantas de Macedo, José Camilo da Silva, Raimundo Sá e Souza, e Manoel Leite Teixeira Filho. Os presidentes, durante este mandato, foram José Alves de Souza (Cazuza) e Antonio Fernandes Coimbra (Mascote). Uma brincadeira corrente nesta época era a relação de filmes, exibidos, em cartaz, ou que seriam apresentados nos cinemas de então (Roulien, Avenida e Eldorado). As listas constavam de títulos de filmes e os respectivos protagonistas, personagens destas campanhas eleitorais. Tanto nos guardados do meu pai, como no arquivo do IPESC, recolhi listas que eram usadas nos pleitos de 54 e 58. Veja estas amostras: Lei do Sertão (Virgílio Távora); Vencido por Mulher (Parsifal Barroso); Dinheiro Falso (Carlos Jereissati); Marcado para Morrer (Temístocles de Castro e Silva); Grito de Vingança (Wilson Roriz); Ligeiro do Gatilho (Edilson Távora); Bichinho de Estimação (José Teófilo Machado); Nem Sansão nem Dalila (Dr. Ney); Maluco por Mulher (Raimundo Viana); O Cangaceiro (Cincinato Furtado Leite); Os Irmãos Ricos (Adauto e Orlando Bezerra); Assim Quis o Destino (Leão Sampaio); Médico Vampiro (Dr. Antonio Conserva Feitosa); Eu me Vingarei (Dr. Gregório Callou); Os Poderosos Também Caem (Gumercindo Ferreira Lima); A Última Chance (José Geraldo da Cruz); A Besta Humana (Odílio Figueiredo); O Fanfarrão (José Monteiro); O Grande Fotógrafo (Targino); O Ébrio (Paulo Silva); Os Miseráveis (Acrísio e Olavo); Lei do Rosário (Cipriano Casimiro); Memórias de um Médico (Dr. Mozart Cardoso de Alencar); E o Vento Levou (Antonio Dias de Macedo); Por Quem os Sinos Dobram (Padre Palhano); Desforra de um Estranho (José Dias de Macedo); O Forasteiro (Flávio Marcílio); O Bobo da Corte (Cazuza Alves); Garotas e Samba (Luiz Dantas); Galalau Traidor (Bruno Ângelo de Figueiredo); Vende Caro o Teu Amor (Aderson Borges de Carvalho); O Caminho do Calvário (Dr. Antonio Conserva Feitosa); O Silêncio de Ouro (Antonio Corrêa Celestino); Na Encruzilhada da Vida (Odílio Figueiredo); O Ermitão (Valdir Menezes Pereira); Arriscando a Própria Vida (Aldemir Sobreira); A Vida de São Francisco (Jésu Almeida); Um Homem e Oito Mulheres (José Geraldo da Cruz); O Homem que Sabia Demais (José Neri Rocha); O Filho Pródigo (Carlos Cruz); Deus lhe Pague (Antonio Corrêa Celestino); Escreveu seu Nome a Bala (Miguel Rocha); O Homem dos Papagaios (José Camilo); Perdido na Noite (Assis Monteiro); Escravo do Vício (Antonio Patu); O Pecado de Ser Pobre (Piaba); Se eu Fosse Deputado (Lauro Pereira); Até o Último Cartucho (Mascote); A Voz da Cova (Hercílio Luz); Camelô da Rua Larga (Berto Feitosa), e muitos outros mais. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 26.01.2017)
BOM DIA! Por Renato Casimiro (27)
No início dos anos 60 eu soube o que era ser radioamador, e o grande serviço que ele prestava a uma comunidade. Éramos aficionados pelo rádio. Meu pai e eu ouvíamos as programações em português, para o Brasil, de emissoras estrangeiras famosas, como A Voz da América, a BBC de Londres, a Rádio Canadá, sem falar nos noticiários regulares das rádios Tupi, do Rio de Janeiro e Bandeirantes, de São Paulo. Meu pai tinha um amigo, radio-técnico (quero dizer, um excelente técnico que montava e consertava rádio), - o Sr. Luís Ferreira de França, PY7-WT(dizia ele, ao microfone: PY7, watt-terra), morando na Rua São José, bem perto de nossa casa, no quarteirão seguinte da Rua Conceição, lado impar. Algumas vezes fui lá com meu pai e o cenário impressionava um menino curioso. Nesta época os equipamentos eram enormes. Os rádios e transmissores ocupavam espaços equivalentes a mais de metro cúbico, e eram a válvulas enormes que ficavam azuladas enquanto o operador falava. Mas, o que me fascinava era aquela função de falar com “meio mundo”, com ótima desenvoltura, ligando extremos que só reconhecíamos nos mapas de livros de geografia, quando aprendíamos a traduzir a linguagem das escalas, medidas com réguas comuns. Por esta época fomos usuários em meio a uma quase tragédia, pois meu pai acidentado, dirigindo uma lambreta, teve que ir a tratamento em São Paulo, acometido de osteomielite na clavícula. Então, enquanto estava afastado da família, era ao Luís de França a quem recorríamos para em contato com um outro colega no bairro do Itaim Bibi, em SP, termos notícias do pai. Havia dias em que “a propagação” não ajudava, a captação do sinal era deficiente e a conversa era pouco entendida. Por estas coisas, cresceu em mim uma admiração muito grande por esta legião de pessoas que prestava os mais relevantes serviços em nome desta necessária integração nacional, sobretudo em meio a grandes catástrofes como foram algumas secas (a de 58, mais notoriamente), enchentes (como o drama do arrombamento do Orós) e coisas assim. Meu pai, mesmo, não sendo um radioamador, foi membro atuante da então LABRE – Liga de Amadores Brasileiros de Radio-Emissão, cuja sessão em Juazeiro, sobretudo animada por Luís de França, “Seu” Neném, Cícera Germano e José Correia, Secundo Sá e outros, tinha uma sede na agencia local nos altos dos correios e ali se reunia para tratar de programações, da divulgação do trabalho benemérito da categoria e planejar os encontros e serviços que prestavam, por exemplo, nas romarias. Diante destes objetivos, meu pai era de diploma de sócio exposto na parede com muito orgulho, e de carteirinha no bolso – aliás, carteirinha de número 12.162, obtida em 1958, coisas que ainda conservo nos meus guardados. É provável que esta simpatia venha do tempo em que, servindo no corpo de bombeiros da Paraíba, era um dos telegrafistas da corporação. Talvez por esta ambiência eu tenha assimilado o grande valor que havia no papel do radioamador, a ponto de ter, de forma como se lerá, a seguir, tentado fazer à minha maneira, este exercício de comunicação. Minha irmã nos conta que “lembro de uma rádio que ele montou em casa, onde era fio por toda parte. Mandava os colegas do quarteirão sintonizar no rádio e assim se comunicava com os vizinhos. Num desse dias, operando sua invenção, pegou num fio descascado e o choque foi tão grande que caiu. Mamãe ouvindo a pancada correu e mandou desmanchar tudo”. Nesta fase de ginasiano, quero dizer, início dos anos 60, era meu amigo o Vital Tavares de Sousa, filho de Luís Tavares, um eletricista de ótimo nome na cidade. O Vital era um técnico de mão cheia. Todos nós achávamos que ele seria um engenheiro eletrônico como poucos. Era de grande habilidade para montar equipamentos eletrônicos, quaisquer que fossem. E foi com ele que me meti nesta de montar um pequeno transmissor com o qual iniciei uma vida de aventuras pelas ondas do rádio, entre os nossos últimos meses na Rua São José e os primeiros tempos na rua Santa Luzia. Lá, a escuta era com o Vital. Aqui, o novo vizinho era o Aldo Farias, numa fase de maior sofisticação, onde o microfone era substituído pelo telefone. Mas, mais adiante eu explico, o porque. Com o Vital, nós que comprávamos revistas de eletrônica, selecionamos um esquema que fosse possível de montar com o apoio que tínhamos do comércio de eletro-eletrônicos. Lembro bem que isto era ainda no tempo de velhas válvulas, como uma dupla de retificadora-amplificadora (5Y3 e 6GNS7). E havia outros componentes comuns, entre resistências, condensadores – fixos e variáveis, transformadores, bobinas, e coisas assim. Mas isto era coisa do Vital que a todo custo queria me meter na cabeça estes conceitos rudimentares de eletrônica. Finalmente, num chassis bem arrumadinho, numa tarde, terminamos de montar o treco. A primeira experiência foi animadora: falamos da cozinha para um rádio na sala da frente. Mas, ele, mais otimista, foi me dizendo que haveríamos de melhorar o desempenho do transmissor e logo atingiríamos a marca indicada no texto do esquema: 200 metros. Também necessitaríamos melhorar a condição da antena. Isto era bom demais, pois nós morávamos quase fundos correspondentes, entre as Ruas São José e a Santa Rosa. Não tardou, o Vital montou um outro transmissor idêntico e passamos a usá-los dentro de sua própria casa. Mais adiante, o Vital me convenceu que uma antena bem arrumada, bem direcionada e no tamanho adequado faria o efeito desejado, e poderíamos nos falar, cada um de sua casa. Não tive paciência de esperar, já que o aparelho estava “falando” e o levei para casa. Meu pai permitiu que eu o instalasse num quartinho que tínhamos entre a sala de jantar e a cozinha. Ali montei a estação, com um microfone improvisado que, infelizmente não tinha o isolamento necessário. Num destes dias, veio de lá uma descarga que eu senti pesado. Puxei o fio da tomada e fiquei num canto feito fera acuada, estático, de olhos esbugalhados. Daí por diante passei a adaptar o telefone, pois neste ponto o seu isolamento era garantido. Mas, permanecia a queixa da intensidade do sinal. O Vital e eu nos falávamos em algumas horas especiais, de manhã cedo ou à noite. Durante o dia, principalmente no horário do almoço, o sinal era fraco. Depois havia a presença de sinais fortes de emissoras de rádio (Educadora e Araripe, do Crato e Iracema, de Juazeiro), pois usávamos as ondas médias, de emissoras comuns de AM. A sugestão veio do meu pai, segundo o qual, uma antena, mesmo que dentro de casa, orientada para a casa do Vital, surtiria um bom resultado. Resolvi usar fio de cobre de um reator queimado de lâmpada fluorescente. Mas, exagerei na distribuição do fio pelo quarto e andei fazendo um espalhamento de parede a parede, até na passagem entre a sala de jantar e a cozinha. Com o aparelho ligado, resolvi tocar no fio. A descarga foi imediata. Nossa casa tinha o chão de tijolo e no inverno, com as chuvas, todo o ambiente ficava muito úmido. Imagino que por isto eu fechei um circuito com um excelente fio terra. Com a descarga eu fiquei imóvel, petrificado. Fui caindo aos poucos, grudado no fio. Era como se a coisa estivesse acontecendo em câmara lenta. Até que, de repente, eu senti que algo se rompeu e o choque cessou. Imediatamente o tombo com todo o corpo no chão, de costas. Depois, foi como a mana diz: mamãe mandou desmanchar tudo. Somente na Rua Santa Luzia eu voltaria a usar o transmissor, mas por pouco tempo. Mas já não era mais como nos tempos das aventuras, feito radioamadores, eu e o Vital Tavares de Sousa. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 27.01.2017)
BOM DIA! Por Renato Casimiro (28)
Nessas memórias da Rua São José ocorreu-me a lembrança de tipos e personagens que nos prestavam serviços. Por isso mesmo, com saudade, não deixo de registrá-los aqui, e os fatos que os envolvia. Madrugada a dentro e o silêncio era quebrado pelo som estridente de um apito, passando rente à nossa porta. Era o guarda noturno que dava o sinal de seu zelo, muitas vezes posto em dúvida. Às vezes alguém comentava com Dona Neném: a senhora tem ouvido o apito do guarda? E não era difícil ouvir a informação de que tal coisa não vinha acontecendo. Até se dizia que nas proximidades do fim do mês o apito mais se ouvia para indicar esta eficiência questionada, para que o pagamento acertado se justificasse. Era comum assim: acertava-se um pagamento que era recolhido pelo interessado, mediante um recibo em bloco que vinha bem enrolado no bolso. Lembro-me mais do “seu” Evilásio, ainda hoje existente e residente lá para cima do Horto, talvez o mais conhecido naquela redondeza de Rua São José. Os serviços profissionais do guarda eram diversos. Cabia a ele vigiar atentamente o quarteirão para que ninguém atentasse para com a segurança dos residentes e o seu respectivo patrimônio. Deveria atender solicitações dos moradores para acordá-los, se necessário, em horas bem combinadas, para: ir cedinho à agência do ônibus, ou estação ferroviária, onde se tomaria o transporte para o sul, ou para Recife, ou para Fortaleza, ou qualquer outro lugar. Interessante observar que havia o marcante badalar dos relógios da Matriz e da Coluna da Hora, mas não se dispensava o serviço do guardinha, batendo à porta, pontualmente. Meu pai viajava freqüentemente, pela Real Aerovias Aeronorte, e para se deslocar para o aeroporto de Fátima, em Crato, já na Serra do Araripe, era necessário estar disponível muito cedo. Vinha um microônibus da companhia, percorrendo as casas dos passageiros, apanhando-os para a longa viagem ao aeroporto. Havia também, pelo menos uma vez por semana, a hora em que tínhamos que ir para a aula de educação física, sob a responsabilidade do Pe. Mário Balbi, no Ginásio Salesiano, pontualmente às 5 da manhã. “Seu” Evilásio não só acordava, como aguardava a hora em que devidamente uniformizado de calção, tênis e camiseta, tínhamos que percorrer o longo trajeto até o colégio, sendo ele, na maioria das vezes, o acompanhante, mesmo à distância, para nos proteger. Enfim, o guarda noturno era um amigo de cada um de nós, participante discreto de nossas relações familiares, mas uma figura indispensável, já naqueles tempos. Outro serviço importante era o das faxineiras. Parece que foi a tia Silvanir quem levou Adélia, uma preta baixinha e falastrona, para o nosso convívio. Na verdade, Adélia prestava serviços de faxina na casa de minha avó. Ai, periodicamente, lavava toda a casa, o que não era boa coisa, pois estou falando de uma casa com piso, ainda, em tijolo. Fazia a limpeza de portas, janelas e, finalmente, deixava a casa de dona Neném um brinco. Fazia gosto ir lá depois desta faxina e sentir aquele cheiro gostoso de casa bem cuidada. Disso tudo, como nada é perfeito, Adélia só tinha mesmo um defeito: gostava de um perfume que fazia gosto. Não é que ela exagerasse pelo corpo, no cabelo e disso ai logo se sentisse a sua mania. Não, era pelo bafo, quando começava a falar. Isso mesmo: Adélia gostava de beber perfume. Um dia ela confessou que bebia perfume para ficar bonita, imagine. Não interessava se fosse uma loção modesta, um extrato ou perfume requintado, qualquer coisa. Abria a garrafinha e gute, gute, gute. Parece uma coisa surrealista, mas era verdade, Adélia tomava porres de perfumes. No começo até que se deixou a coisa correr mais livremente, mas a dose, por vezes era tão cavalar, que ela caia de tal embriagues. Cada dia que a Adélia era acertada para a faxina, Dona Neném, na roda da calçada, à noitinha, já fazia a advertência: “Amanhã vem a Adélia, guardem os perfumes.” E caíamos numa só gargalhada. Outro serviço de terceiros era o abastecimento de água potável. De um modo geral, a água que se bebia pelas casas da Rua vinha das cacimbas e poços de cada residência. Lembro que, em tempo de chuva, era comum por os potes para recolher das bicas a água do telhado. Dona Neném determinava que não se pegasse das primeiras chuvas: tinha que lavar bem o telhado. Esta água ia para os serviços gerais. Potes e panelas postos ao ar livre coletava uma água para beber. Mas, havia umas águas especiais. Apareciam pela Rua São José os vendedores de água que a traziam em ancoretas de madeiras, em animais ou pequenas carroças contendo tanques de ferro. Vinham de poços amazonas das bandas das terras da Timbaúba, ou do Salgadinho (Dona Radi, de seu Luiz de França), das fontes do Crato, como as da Nascente. Vendiam nos mercados, entregues em latas de querosene de vinte litros. Havia um tipo especial, comprada por alguns abastados da Rua São José – a do Caldas, a água pura das fontes do Bom Jesus e do João Coelho. Custava mais caro, pois o transporte demorado valorizava ainda mais o produto. Minha avó, vez por outra atendia ao pregão (Olha a água do Caldas ! diziam pelas portas) e pagava pelo privilégio. De noite, na calçada, recomendava: quando o vigário Zé de Lima passar, ofereçam água do Caldas! Outro serviço notado era o de fornecimento de lenha e carvão. As cozinhas na minha meninice funcionavam a carvão e lenha. Um belo fogão, todo em ferro, da casa da tia Etercília, comia uma lenha topada. Era o mister de fazer ótimos doces de goiaba e buriti, vindos da Timbaúba. O de lá de casa era de alvenaria e queimava os dois. Natural, portanto, que pela Rua São José transitassem os fornecedores destes combustíveis. A lenha no volume, o carvão no peso – era assim que se comprava. Mas, pelos cantos da cidade havia as carvoarias e os depósitos de lenha. No número 450 da Rua São José, o português Ângelo de Almeida mantinha um depósito de lenha para seu próprio consumo na Padaria Luzitana. Dessa não tínhamos acesso, a não ser que num gesto de cortesia dos operários se levasse alguma para casa, para uma brincadeira qualquer dos moleques. Em frente a nós, no número 477, morava o “seu” Siqueira, proprietário de uma carvoaria na Rua Santa Clara, já na baixa dos Salesianos. Muitas vezes fui lá como menino de recados. “Seu” Siqueira providenciava que um empregado levasse o carvão até nossa casa, carregando um carrinho. Carvão também tinha sua utilidade para o nosso lazer: escrever nas calçadas de cimento, desenhando super-heróis, declarações de amor para as meninas que adorávamos, ou para fazer a macaca e coisas assim. E não eram apenas estes, os serviços de terceiros. Recordo de muita gente mais. Por exemplo: o velho consertador de guarda chuvas, e bem assim os tiradores de goteiras que nos apareciam na abertura da “quadra invernosa”; os “chapeados” como o preto Paixão, gente de serviço braçal para mudanças e transportes. Em algumas esquinas eles existiam em pequenos grupos: eram os chapeados. Eram pessoas que estavam disponíveis para serviços de cargas. Seus serviços eram de grande utilidade quando queríamos fazer transportes, mudanças e pequenos trabalhos domésticos, onde importava o deslocamento de volumes e grandes pesos. Poderíamos encontrá-los nos cruzamentos da Rua São Pedro com Santa Luzia, São João e Conceição, principalmente. Eram ditos, chapeados, porque em seus chapéus havia uma pequena chapa metálica com um número que os identificava perante a Prefeitura Municipal. E os eletricistas? Os eletricistas passaram a ter grande importância quando, de fato, recebemos a energia de Paulo Afonso, trazida para o Cariri, a meio caminho de Fortaleza, pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco - CHESF. Eu os conhecia bem porque eram freqüentadores da nossa loja e muito nos servimos para todo tipo de trabalho. Às vezes era coisa simples, como trocar uma lâmpada. Outras vezes eram serviços mais complexos como renovar toda a instalação da casa e adaptá-la aos novos padrões exigidos pelo concessionário local, a CELCA. Mesmo com o fornecimento de energia elétrica apenas em curtos períodos noturnos, ou nos finais de semana, a cidade demandava serviços profissionais de eletricistas. Eram poucos: Alemão, 51, Luiz Tavares, “seu” João. Era fácil reconhecê-los: escada aos ombros, alicate e chaves de fendas metidos na cintura. Meu pai, proprietário do Centro Elétrico, das poucas empresas especializadas (outras eram Aliança de Ouro e Edgar Coelho Alencar) os mantinha próximos para atender os clientes. Eu os via sempre pela Rua São José, principalmente quando do advento da energia de Paulo Afonso. Não será demais, ainda voltar a este assunto, para lembrar outros serviços e alguns tipos inesquecíveis. Bom dia.
(Postado em Facebook: https://www.facebook.com/renato.casimiro1, em 28.01.2017)
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